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quinta-feira, 19 de abril de 2012

O que vai na praça

NOTICIÁRIO COMO ALTERNATIVA CREDÍVEL À INTRIGA OFICIAL

Apreciar as linhas e as dimensões do 'Independence', como fizemos esta quarta-feira, é mais salutar do que ouvir certas notícias ao café, verdadeiras mas em tons viperinos.

O homem desesperava-se. É comerciante em situação aflitiva, como os outros. Volteava febrilmente a saqueta de açúcar em cima do pires, de um lado e de outro, para se acalmar, indiferente à chilreada dos turistas nas mesas do lado e ao concerto de viola mais acima, em frente à Sé.
- Isto é uma terra de loucos. Podiam pegar no resto do dinheiro que possa haver aí para com ele ajudar as pequenas e médias empresas a sobreviver - a manter postos de trabalho, fazer alguma moeda circular para ir reanimando a economia. Mas não. Preferem pagar o desemprego para os desgraçados não fazerem nada, não produzirem, enfim, é tudo para fazer estagnar ainda mais a vida económica disto.
O vizinho do lado, aquele ensebado, antigo vendedor de tabaibos e de pepinos à volta do Mercado, abanava a cabeça em sinal afirmativo. Outro, ex-bancário, sem levantar os olhos do jornal, resumia-se a umas interjeições do género "esta história do Cristóvão do Sporting que já foi da 'judite' está mal contada", "o Rui Alves perdeu e agora quer o Sporting fora da Taça, não deve estar bom", "o Pinto da Costa não diz que se recandidata, faz-me lembrar alguém, nunca mais larga o poleiro". 
- Da minha parte vou-me aguentando - prossegue o primeiro, que explora um café muito frequentado por estudantes - Um garoto claro a este, um bolo àquela... Quando não der, fecho a porta e os três trabalhadores vão para o desemprego, como eu.
- Os bares e cafés abrem aos molhos e fecham aos magotes - constata o ensebado com o cabelo oleoso penteado para trás, às pastas rijas como se fosse macadame - Ainda bem que fechei o negócio dos tabaibos e arranjei lugar como segurança pessoal. Olha, em vez do café, devias ter investido noutra coisa.
- Se investisse mais alto, era pior ainda. Para começar, não tinha verba para isso. Mas... conheço o caso daquele antigo emigrante na Venezuela que decidiu vir colaborar com a sua terra, investindo o que ganhou lá  fora numa vida inteira. Com a ajuda de um empréstimo bancário, aquilo foi construção e mais construção. A certa altura, crise geral, obras por acabar, blocos por vender... Dinheiro para juros acabou e o banco tomou conta de tudo. O homem, depois de uma vida na Venezuela de arcas ao trabalho, porque aquilo lá é de sol a sol, ficou sem nada. A ideia dele! Vir para cá entregar o dinheiro a estes bandidos! E querias que eu...


Monopólios turísticos


- Da minha parte, se eu tivesse em dinheiro o valor dos bordados que empatei, porque actualmente ninguém os compra, já tinha fechado aquilo - quem o afiança é o dono de um bazar de souvenirs no centro da cidade - O negócio não dá nada.
- Homem, vocês estão sempre a queixar-se, já temos falado aqui várias vezes na situação... Então estes turistas todos que andam aqui não gastam nada nos bazares?
- Se gastassem, eu ia estar aqui para te aturar, oh espertalhão. Levanta o rabo da cadeira e mexe os pés até acolá, vê o movimento louco nas ruas dos bazares.
E põe-se a explicar: deste lado da cidade, não temos o João Carlos Abreu que a Zona Velha tem para levar os turistas para lá, com os conhecimentos e as influências dele.
- Ora, isto deste lado - raciocina ele ainda - também é zona velha. Foi nestas ruas que se venderam os primeiros bordados Madeira. A entrada da cidade era mesmo entrada. Os turistas enchiam os bazares para comprar as suas recordações e os bordados. Agora... lá de vez em quando um lenço, é o que vendo. Bordado, só se for um madeirense a comprar. É raro. Os turistas não passam ali, é como ir a Roma e não ver o papa. Quem manda é o monopólio.
- Olha este também com a mania - desfaz um contabilista sem trabalho.
- Não é mania da perseguição, é assim mesmo. Há o monopólio do teleférico e as camionetas já levam os passageiros dos navios, direitos da Pontinha para o Almirante Reis. Eles nem vêm conhecer esta zona aqui no centro.
Acrescenta outro monopólio, de que nos falou aquele empregado aqui, domingo passado: o das camionetas que se dirigem à Patrício e Gouveia, na Rua do Anadia, e daí para a Madeira Wine... daí para as camionetas e navio com eles.
- Se me vejo livre daqueles bordados inúteis que tenho ali, fecho as portas e vou descansar que é um regalo.


JM releva preenchidíssima agenda do chefe


O ex-bancário dobra o jornal, deixa-o em cima da mesa e resolve provocar:
- Isto está bom é para os da política, esses não vão à falência. O dinheirinho pode faltar para fotocópias das escolas, para as farmácias, para...
- ...Para o papel higiénico e os remédios do hospital - ajuda o ensebado.
- Isso tudo pode faltar, mas para eles o dinheiro é certinho. Mesmo para os que têm dois ordenados.
- Eu já estava admirado de não meterem política nesta m... - estupora um ex-porteiro da noite, que ainda hoje mantém amigos entre a classe dirigente.
- Não é política, é dinheiro, as verbas que seriam melhor aproveitadas nas necessidades do que no alimento dessa canalha - diz o ex-bancário ainda ressabiado com a espécie de PPP (parcerias público-privadas) que sempre viu nas negociatas entre os executivos madeirenses e a banca.
- Se eles trabalham, têm direito a vencimento. Ou vão viver do ar?
- Que vão para a estiva, ora bolas - insiste o ex-bancário, apoiado pelo olhar do ensebado - veja-se o trabalhinho do outro, o das Angústias, estes dias. Veio no Jornal da Madeira, como se fosse uma agenda de trabalho pesado. Se não me engano, o fulano vai ocupar os próximos dias a inaugurar uma vereda, depois fuma um charuto, pago por nós, ao paleio com um embaixador qualquer que vem aí, acho que tem também uma daquelas reuniões do governo que servem para dar um louvor a alguém, e finalmente falará de política geral e partidária ou na inauguração de uma exposição ou numa entrega de diplomas de costura. 


Infiltrados do Machadinho


Senti que a barra começava a pesar mais do que o admissível. Às vezes, há uns bufos na zona infiltrados pelo Machadinho, que faz tudo para mostrar serviço e provar a sua utilidade ao chefe. Já está cansado do castigo no deserto e precisa de voltar às lides - denunciar este, queimar aquele, jogar com os patetas do partido que precisam de tacho, enfim, o trivial em 30 anos. 
- Realmente, não é um trabalho muito pesado - reconhece o ex-porteiro, referindo-se à notável agenda do monarca.
- Trabalho? Chamas trabalho a isto? - o ex-bancário 'passa-se' - Palhaçada, palhaçada é que é. E paga com dois ordenados!
- Ainda bem que o das Angústias não perdeu a acção em tribunal com o Carlos Pereira do PS - o ensebado deita achas na fogueira -, porque, se perdesse, a conta da indemnização ainda sobrava para nós.
- Lá por aí estou descansado - volta o ex-bancário - Os homens daquela estirpe nunca perdem uma acção na Madeira.
- Bem, o Berardo anda em palpos de aranha por causa do processo que o Jardim Gonçalves lhe moveu - observa o ensebado - Não se sabe se a sentença não o trama. Sabes que a Justiça é cega...
- Oh aneróide de uma figa - o ex-bancário simula um soco em cima da mesa - Se também pensas que a Justiça nesta terra é cega é porque estás a ver mal a coisa.

Tentando passar despercebido, levantei-me daquele inferno e caminhei de cabeça baixa para o aterro. Vão lá comprometer outro! A beleza do 'Independence of the Seas', atracado na Pontinha, libertou-me das línguas viperinas que falam verdade nas esplanadas, mas podiam ser um pouco mais suaves.

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